Textos
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ESCRAVIDÃO
MORAL
Moral é a parte da cultura relacionada
aos deveres do homem para consigo e para com a sociedade.
A escravidão moral se caracteriza pelo
tolhimento da vontade em decorrência da moral dominante.
Muitas vezes o indivíduo não se sente
feliz em agir de acordo com a moral dominante, mas a sociedade o induz/coage a
agir a assim e ele o faz por diferentes motivos: por necessidade de aceitação,
por medo de se arrepender, por vergonha de ter um comportamento diferente do
padrão, por resignação (sempre foi assim ou a vida é assim), por comodidade
(não ter problemas) ou por simplesmente ignorar uma alternativa melhor.
A escravidão moral, por ser de alcance
generalizado, pode levar a um estado de insatisfação coletivo e, portanto, é
preciso que a moral dominante evolua constantemente na busca de princípios que
possibilitem à sociedade ser feliz. Entretanto, esta evolução da moral só
ocorrerá se houver indivíduos que, na busca da própria felicidade, a questionem
e proponham novos paradigmas.
TEXTOS
DE NIETZSCHE
(Trechos dos
livros: "Para além do bem e do mal", "O crepúsculo dos
ídolos",
"A gaia
ciência", "O anti-Cristo", "Humano, demasiado humano")
Moral nobre e moral escrava - Aqui,
Nietzsche traça, com seu estilo direto e irreverente, as características que
demarcam os dois tipos de vida, representados pelas duas morais: a nobre (ou
dos senhores) e a escrava.
"Numa perambulação pelas muitas
morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora dominaram e continuam
dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam juntos e
ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos, e uma
diferença fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de
escravos; acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais
misturadas aparecem também tentativas de mediação entre as duas morais, e, com
ainda maior freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes
inclusive dura coexistência até mesmo num homem, no interior de uma só alma.
As diferenciações morais de valor se
originaram ou dentro de uma espécie dominante, que se tornou agradavelmente
cônscia da sua diferença em relação à dominada, ou entre os dominados, os
escravos e dependentes de qualquer grau. No primeiro caso, quando os dominantes
determinam o conceito de "bom", são os estados de alma elevados e
orgulhosos que são considerados distintivos e determinantes da hierarquia. O
homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses
estados de elevação e orgulho: ele os despreza. Note-se que, nessa primeira
espécie de moral, a oposição "bom" e "ruim" significa tanto
quanto "nobre" e "desprezível"; a oposição "bom"
e "mau" tem outra origem.
Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho,
o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar
obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa
maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo, o mentiroso - é crença básica
de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso. "Nós ,
verdadeiros" - assim se denominavam os nobres da Grécia antiga.
É óbvio que as designações morais de
valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a homens, e somente depois, de
forma derivada, a ações: por isso é um grande equívoco, quando historiadores da
moral partem de questões como "por que foi louvada a ação
compassiva?". O homem de espécie nobre se sente como aquele que determina
valores, ele não tem necessidade de ser abonado, ele julga: "o que me é prejudicial
é prejudicial em si", sabe-se como o único que empresta honra às coisas,
que cria valores. Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é
glorificação de si.
Em primeiro plano está a sensação de
plenitude, de poder que quer elevada, a consciência de uma riqueza que gostaria
de ceder e presentear - também o homem nobre ajuda o infeliz, mas não ou quase
não por compaixão, antes por um ímpeto gerado pela abundância de poder.
O homem nobre honra em si o poderoso, e
o que tem poder sobre si mesmo, que entende de falar e calar, que com prazer
exerce rigor e dureza consigo e venera tudo que seja rigoroso e duro.
"Um coração duro me colocou Wotan
no peito", diz uma velha saga escandinava: uma justa expressão poética da
alma de um orgulhoso viking. Uma tal espécie de homem se orgulha justamente de não
ser feito para a compaixão: daí o herói da saga acrescentar, em tom de aviso,
que "quem quando jovem não tem o coração duro, jamais o terá". Os
nobres e bravos que assim pensam estão longe da moral que vê o sinal distintivo
do que é moral na compaixão, na ação altruísta ou no desintéressement [desinteresse];
a fé em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical hostilidade e ironia face
à "abnegação" pertencem tão claramente à moral nobre quanto um leve
desprezo e cuidado ante as simpatias e o "coração quente".
São os poderosos que entendem de
venerar, esta é sua arte, o reino de sua invenção. A profunda reverência pela
idade e pela origem - todo o direito se baseia nessa dupla reverência -, a fé e
o preconceito em favor dos ancestrais e contra os vindouros são algo típico da
moral dos poderosos; e quando, inversamente, os homens das "idéias
modernas" crêem quase instintivamente no progresso" e no
"porvir", e cada vez mais carecem do respeito pela idade, já se acusa
em tudo isso a origem não-nobre dessas "idéias"
O que faz uma moral dos dominantes
parecer mais estranha e penosa para o gosto atual, no entanto, é o rigor do seu
princípio básico de que apenas frente aos iguais existem deveres; de que frente
aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio, pode-se agir ao
bel-prazer ou como quiser o coração", e em todo caso "além do bem e
do mal": aqui pode entrar a compaixão, e coisas do gênero. A capacidade e
o dever da longa gratidão e da longa vingança - as duas somente com os iguais
-, a finura na retribuição, o refinamento no conceito de amizade, de uma certa
necessidade de ter inimigos (como canais de escoamento, por assim dizer, para
os afetos de inveja, agressividade, petulância - no fundo, para poder ser bem amigo):
todas essas são características da moral nobre, que, como foi indicado, não é a
moral das "idéias modernas", sendo hoje difícil percebê-la, portanto,
e também desenterrá-la e descobri-la.
É diferente com o segundo tipo de moral,
a moral dos escravos. Supondo que os violentados, oprimidos, prisioneiros,
sofredores, inseguros e cansados de si moralizem: o que terão em comum suas
valorações morais? Provavelmente uma suspeita pessimista face a toda a situação
do homem achará expressão, talvez uma condenação do homem e da sua situação. O
olhar do escravo não é favorável às virtudes do poderoso: é cético e
desconfiado, tem finura na desconfiança frente a tudo "bom" que é
honrado por ele gostaria de convencer-se de que nele a própria felicidade não é
genuína.
Inversamente, as propriedades que servem
para aliviar a existência dos que sofrem são postas em relevo e inundadas de
luz: a compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a
diligência, a humildade, a amabilidade recebem todas as honras - pois são as
propriedades mais úteis no caso, e praticamente todos os únicos meios de
suportar a pressão da existência.
A moral dos escravos é essencialmente
uma moral de utilidade. Aqui está o foco de origem da famosa oposição "bom"
e "mau" - no que é mau se sente poder e periculosidade, uma certa
terribilidade, sutileza e força que não permite o desprezo. Logo segundo a
moral dos escravos o "mau" inspira medo; segundo a moral dos senhores
e precisamente o "bom" que desperta e quer despertar medo, enquanto o
homem "ruim" é sentido como desprezível. A opressão chega ao auge
quando, de modo conseqüente à moral dos escravos, um leve aro de menosprezo
envolve também o "bom" dessa moral - ele pode ser ligeiro e benévolo
porque em todo caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem
inofensivo: é de boa índole, fácil de enganar, talvez um pouco estúpido, ou seja,
un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se torne
preponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e
"estúpido".
Uma última diferença básica: o anseio de
liberdade, o instinto para a felicidade e as sutilezas do sentimento de
liberdade pertencem tão necessariamente à moral e moralidade escrava quanto a
arte e entusiasmo da veneração, da dedicação, sintoma regular do modo
aristocrático de pensamento e valoração.
Com isso, pode-se compreender por que o
amor-paixão - nossa especialidade européia - deve absolutamente ter uma
procedência nobre: é notório que ele foi invenção dos cavaleiros-poetas
provençais, aqueles magníficos, inventivos homens do gai saber [gaia ciência],
aos quais a Europa tanto deve, se não deve ela mesma." (NIETZSCHE,
Friedrich. Além do bem e do mal, § 260. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo,
Companhia das Letras, 1992, p, 172-5)
A moral como contra-natureza - Todas as
paixões têm uma época em que são meramente nefastas, durante a qual, com o peso
da estupidez, arrastam as suas vítimas para uma depressão - e uma época mais
tardia muito posterior, na qual desposam o espírito, na qual se
"espiritualizam". Noutro tempo movia-se guerra à própria paixão, por
causa da estupidez nela existente: as pessoas conjuravam-se para aniquilá-la, -
todos os velhos monstros da moral coincidem unanimemente em que il faut tuer
les passions.
A fórmula mais célebre desta idéia
encontra-se no Novo Testamento, naquele Sermão da Montanha, no qual, diga-se de
passagem, as coisas não são consideradas de modo algum desde as alturas. Nele
se diz, por exemplo, aplicando-o na prática à sexualidade, "se o teu olho
te escandaliza, arranca-o": por sorte nenhum cristão atua de acordo com
esse preceito. Aniquilar as paixões e apetites meramente para prevenir a sua
estupidez e as conseqüências desagradáveis desta é algo que hoje nos aparece
simplesmente como uma forma aguda de estupidez. Já não admiramos os dentistas
que extraem os dentes para que não continuem a doer... Com certa equidade
concedamos, por outro lado, que o conceito "espiritualização da
paixão" não podia ser concebido de forma alguma no terreno de que brotou o
cristianismo. A Igreja primitiva lutou, com efeito, como é sabido, contra os
"inteligentes" em favor dos "pobres de espírito": como
esperar dela uma guerra inteligente contra a paixão? - A Igreja combate a
paixão com a extirpação, em todos os sentidos da palavra: a sua medicina, a sua
"cura" é a castração. Não pergunta nunca: "como espiritualizar,
embelezar, divinizar um apetite?" - ela sempre carregou o acento da
disciplina no extermínio (da sensualidade, do orgulho, da vontade de poder, da
ânsia de posse, do desejo de vingança). - Porém atacar as paixões na sua raiz
significa atacar a vida na sua raiz: a praxis da Igreja é hostil à vida...
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Esse mesmo remédio, a castração, o
extermínio, é escolhido instintivamente, na luta contra um desejo, pelos que
são demasiado débeis, pelos que estão demasiado degenerados para poderem
impor-se moderação nesse desejo: por aquelas naturezas que, para falar em
metáfora (e sem metáfora -), têm necessidade de La Trappe , de alguma
declaração definitiva de inimizade, de um abismo entre elas e uma paixão. Os
meios radicais afiguram-se indispensáveis tão-só aos. degenerados; a debilidade
da vontade, ou, dito com mais exatidão, a incapacidade de não reagir a um
estímulo é simplesmente outra forma de degenerescência. A inimizade radical, o
ódio mortal contra a sensualidade. não deixa de ser um sintoma que induz a
refletir: ele autoriza a fazer conjecturas sobre a saúde mental de quem comete
tais excessos. - Essa hostilidade, esse ódio chega ao seu cúmulo, além disso,
só quando tais naturezas não têm já firmeza bastante para a cura radical, para
renunciar ao seu "demônio". Deite-se um olhar para a história inteira
dos sacerdotes e filósofos, não esquecendo a dos artistas: as coisas mais
venenosas contra os sentidos não foram ditas pelos impotentes, tão-pouco pelos
ascetas, mas sim pelos ascetas impossíveis, por aqueles que teriam necessitado
de ser ascetas...
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A espiritualização da sensualidade
chama-se amor: ela é um grande triunfo sobre o cristianismo. Outro triunfo é a
nossa espiritualização da inimizade. Consiste em compreender profundamente o
valor que possui o ter inimigos: dito brevemente, em proceder e extrair conclusões
ao inverso de como se procedia e extraia conclusões noutro tempo. A Igreja quis
sempre a aniquilação dos seus inimigos: nós, nós os imoralistas e anticristãos,
vemos a nossa vantagem em que a Igreja subsista. Também no âmbito político a
inimizade se tornou agora mais espiritual, - muito mais inteligente, muito mais
reflexiva, muito mais indulgente. Quase todos os partidos se dão conta de que
para a sua própria autoconservação lhes interessa que o partido oposto não
perca forças; o mesmo se deve dizer para a grande política. Especialmente uma
criação nova, por exemplo o novo Reich, tem uma maior necessidade de inimigos
que de amigos: só na antítese se sente necessário, só na antítese chega a
tornar-se necessário... Não nos comportamos de outro modo com o nosso
"inimigo interior": também aqui temos espiritualizado a inimizade,
também aqui temos compreendido o seu valor. Só se é fecundo pelo preço de se
ser rico em contradições; só se permanece jovem na condição de que a alma não
se relaxe, não deseje a paz... Nada se nos tornou mais estranho que aquela
aspiração de outrora, a aspiração à "paz de espírito", a aspiração
cristã; nada nos causa menos inveja do que a moral ruminante e a sebosa
felicidade da consciência tranqüila. Renunciou-se à vida grande quando se
renunciou à guerra... Em muitos casos, desde logo, a "paz de espírito"
não é mais do que um mal-entendido, - outra coisa, a que unicamente não se sabe
atribuir um nome mais honrado. Sem divagações nem preconceitos aqui temos uns
quantos casos. "Paz de espírito" pode ser, por exemplo, a plácida
projeção de uma animalidade rica no terreno moral (ou religioso). Ou o começo
da fadiga, a primeira sombra que traz o crepúsculo, qualquer espécie de
crepúsculo. Ou um sinal de que o ar está úmido, de que se aproximam ventos do
Sul. Ou o agradecimento, sem se o saber, por uma digestão feliz (chamado às
vezes "filantropia"). Ou a calma do convalescente, para o qual todas
as coisas têm um sabor e que está à espera... ou o estado que se segue a uma intensa
satisfação da nossa paixão dominante, o sentimento de bem-estar próprio de uma
saciedade rara. Ou a debilidade senil da nossa vontade, dos nossos apetites,
dos nossos vícios. Ou a preguiça, persuadida pela vaidade a ataviar-se com
adornos morais. Ou o advento de uma certeza, mesmo de uma certeza terrível,
após uma tensão e tortura prolongadas devidas à incerteza. Ou a expressão da
maturidade e a maestria na atividade, no criar, agir, querer, a. respiração
tranqüila, a alcançada "liberdade da vontade"... Crepúsculo dos
ídolos: quem sabe?, talvez também unicamente uma espécie de "paz de
espírito"...
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Vou reduzir a fórmula um princípio. Todo
o naturalismo em moral, quero dizer, toda a moral sã está regida por um
instinto da vida, - um mandamento qualquer da vida é cumprido com um certo
cânone de "deves" e "não deves", um obstáculo e uma
inimizade qualquer no caminho da vida ficam com isso eliminados. A moral contranatural,
ou seja, quase toda a, moral, até agora ensinada, venerada e pregada,
dirige-se, pelo contrário, precisamente contra os instintos da vida - é uma
condenação, por vezes encoberta, por vezes ruidosa e insolente, desses
instintos. Ao dizer "Deus lê nos corações", a moral diz não aos
apetites mais baixos e mais altos da vida e considera Deus inimigo da vida... O
santo para quem Deus tem a sua complacência é o castrado ideal... A vida acaba
onde começa o reino de Deus"...
(Friedrich Nietzsche, "Crepúsculo
dos ídolos, ou como se filosofa à marteladas", Lisboa, Guimarães Editores,
Lda, 1985)
O ressentimento - "O homem do
ressentimento traveste sua impotência em bondade, a baixeza temerosa em
humildade, a submissão aos que odeia em obediência, a covardia em paciência, o
não poder vingar-se em não querer vingar-se e até perdoar, sua própria miséria
em aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justiça
divina sobre os ímpios. O reino de Deus aparece como produto do ódio e da
vingança dos fracos. Incapaz de enfrentar o que o cerca, o homem do
ressentimento inventa, para seu consolo, o outro mundo. Assim também procede o
"filisteu da cultura’, que só pode afirmar-se através da negação do que
considera seu oposto: a própria cultura. Ou então, o homem da ciência, que a si
mesmo opõe um outro: o pesquisador, que pretende comportar-se de maneira
impessoal, desinteressada e neutra diante do mundo, para chegar a abordá-lo com
objetividade. E ainda o filósofo que, na elaboração de suas idéias, acredita
poder desvinculá-las da própria vida, não se reconhecendo como advogado de seus
preconceitos." ("Para além de Bem e Mal", parágrafo 2)
Os valores "Bom" e
"Mau" - torna-se possível... traçar um dupla história dos valores
"Bem" e "mal". O fraco concebe primeiro a idéia de
"mau", com que designa os nobres, os corajosos, os mais fortes do que
ele - e então a partir da idéia de "mau", chega, como antítese, à
concepção de "bom", que se atribui a si mesmo. O forte, por outro
lado, concebe espontaneamente o princípio "bom" a partir de si mesmo
e só depois cria a idéia de "ruim". Do ponto de vista do forte, "ruim"
é apenas uma criação secundária, enquanto para o fraco "mau" é a
criação primeira, o ato fundador da sua moral, a moral dos ressentidos. O forte
só procede por afirmação e, mais, por auto-afirmação; o fraco só pode firmar-se
negando o que considera ser o seu oposto.
"O levante dos escravos na moral
começa quando o ressentimento mesmo se torna criador e pare valores: o
ressentimento de seres tais, aos quais está vedada a reação propriamente dita,
o ato, e que somente por uma vingança imaginária ficam quites. Enquanto a moral
nobre brota de um triunfante dizer-sim a si próprio, a moral de escravos diz
não, logo de início, a um "fora", a um "outro", a um
"não-mesmo". E esse não é seu ato criador. Essa inversão do olhar que
põe valores, essa direção necessária para fora, em vez de voltar-se para si
próprio - pertence, justamente, ao ressentimento: a moral de escravos precisa
sempre, para surgir, de um mundo oposto e exterior, precisa, dito
fisiologicamente, de estímulos externos para em geral agir - sua ação é, desde
o fundamento, por reação."("Para a Genealogia da Moral",
Primeira dissertação, parágrafo 10)
Liberdade de vontade - Onde um homem
chega à convicção fundamental de que é preciso que mandem nele, ele se torna
"crente"; inversamente seria pensável um prazer e uma força de
autodeterminação, uma liberdade de vontade, em que um espírito se despede de
toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder
manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos dançar
ainda. Um tal espírito seria o espírito livre "par excellence"
("A Gaia Ciência", quinto livro, parágrafo 347)
Humildade - O verme pisado encolhe-se.
Atitude inteligente. Com isso reduz a probabilidade de ser pisado de novo. Na
linguagem da moral: humildade." (Friedrich Nietzsche, "Crepúsculo dos
ídolos, ou como se filosofa à marteladas", Lisboa, Guimarães Editores,
Lda, 1985, pág. 16)
Moralidade e sucesso - Não são apenas os
espectadores de um ato que com freqüência medem o que nele é moral ou imoral conforme
o seu êxito: não, o seu próprio autor faz isso. Pois os motivos e intenções
raramente são bastante claros e simples, e às vezes a própria memória parece
turvada pelo sucesso do ato, de modo que a pessoa atribui ao próprio ato
motivos falsos ou trata motivos secundários como essenciais. E freqüente o
sucesso dar a um ato o brilho honesto da boa consciência, e o fracasso lançar a
sombra do remorso sobre uma ação digna de respeito. Daí resulta a conhecida
prática do político que pensa: "Dêem-me apenas o sucesso: com ele terei a
meu lado todas as almas honestas - e me tornarei honesto diante de mim
mesmo". - De modo semelhante, o sucesso pode tomar o lugar do melhor
argumento. Muitos homens cultos acham, ainda hoje, que a vitória do
cristianismo sobre a filosofia grega seria uma prova da maior verdade do
primeiro - embora nesse caso o mais grosseiro e violento tenha triunfado sobre
o mais espiritual e delicado. Para ver onde se acha a verdade maior, basta
notar que as ciências que nasciam retomaram ponto a ponto a filosofia de
Epicuro, mas rejeitaram ponto a ponto o cristianismo. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 62, aforismo 68, ano
2001, São Paulo)
Execuções - O que faz com que toda
execução nos ofenda mais que um assassinato? É a frieza dos juízes, a penosa
preparação, a percepção de que um homem é ali utilizado como um meio para
amedrontar outros. Pois a culpa não é punida, mesmo que houvesse uma; esta se
acha nos educadores, nos pais, no ambiente, em nós, não no assassino -
refiro-me às circunstâncias determinantes. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 63, aforismo 71, ano 2001, São Paulo)
Saber esperar - Saber esperar é algo tão
difícil, que os maiores escritores não desdenharam fazer disso um tema de suas
criações. Assim fizeram Shakespeare em Otelo e Sófocles em Ajax; se este
tivesse deixado o sentimento esfriar por um dia apenas, seu suicídio já não lhe
teria parecido necessário, como indica a fala do oráculo; provavelmente teria
zombado das terríveis insinuações da vaidade ferida e teria dito a si mesmo:
quem, no meu lugar, já não tomou unia ovelha por um herói? será uma coisa tão
monstruosa? Pelo contrário, é algo humano e comum; dessa forma Ajax poderia se
consolar. A paixão não quer esperar; o trágico na vida de grandes homens está,
freqüentemente, não no seu conflito com a época e a baixeza de seus
semelhantes, mas na sua incapacidade de adiar por um ou dois anos a sua obra;
eles não sabem esperar. - Em todos os duelos, os amigos que dão conselhos devem
verificar apenas uma coisa: se as pessoas envolvidas podem esperar; se este não
for o caso, um duelo é razoável, pois cada um diz a si mesmo: "Ou eu
continuo a viver, e então ele deve morrer imediatamente, ou o contrário".
Em tal caso, esperar significaria sofrer por muito tempo ainda o horrendo
martírio da honra ferida, diante de quem a feriu; o que pode constituir mais
sofrimento do que o que vale a própria vida. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 60, aforismo 61, ano 2001, São Paulo)
A esperança - Pandora trouxe o vaso que
continha os males e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens,
exteriormente um presente belo e sedutor, denominado "vaso da
felicidade". E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando: desde
então vagueiam e prejudicam os homens dia e noite. Um único mal ainda não saíra
do recipiente: então, seguindo a vontade de Zeus, Pandora repôs a tampa, e ele
permaneceu dentro. O homem tem agora para sempre o vaso da felicidade, e pensa
maravilhas do tesouro que nele possui; este se acha à sua disposição: ele o
abre quando quer; pois não sabe que Pandora lhe trouxe o recipiente dos males,
e para ele o mal que restou é o maior dos bens - é a esperança. - Zeus quis que
os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a
vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança:
ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens.
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
63, aforismo 71, ano 2001, São Paulo)
Valor da diminuição - Não poucos, talvez
a maioria homens, têm necessidade de rebaixar e diminuir na sua imaginação
todos os homens que conhecem, para manter sua autoestima e uma certa competência
no agir. E, como as naturezas mesquinhas são em número superior, é muito
importante elas terem essa competência. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 61, aforismo 63, ano 2001, São Paulo)
Deus - É com seu próprio deus que as
pessoas são mais desonestas: não lhe é permitido pecar. (Friedrich Nietzsche,
"Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 65a, pág.
67)
Mão que mata - Fomos maus espectadores
da vida, se não vimos também a mão que - delicadamente - mata. (Friedrich
Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo
69, pág. 68)
O enfurecido - Diante de um homem que se
enfurece conosco devemos tomar cuidado, como diante de alguém que já tenha
atentado contra a nossa vida; pois o fato de ainda vivermos se deve à ausência
do poder de matar; se os olhares bastassem, há muito estaríamos liquidados. É
traço de uma cultura grosseira fazer calar alguém tornando visível a
brutalidade, suscitando o medo. - Do mesmo modo, o olhar frio que os nobres têm
para seus criados é resíduo daquela separação dos homens em castas, um traço de
antigüidade grosseira; as mulheres, essas conservadoras do antigo, também
conservaram mais fielmente essa survival [sobrevivência]. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 61, aforismo 64, ano
2001, São Paulo)
Medida para todos os dias - Raramente se
erra, quando se liga as ações extremas à vaidade, as medíocres ao costume e as
mesquinhas ao medo. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano",
Cia de Letras, p. 65, aforismo 74, ano 2001, São Paulo)
Ideal - Quem alcança seu ideal, vai além
dele. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras,
ano 2001, Aforismo 73, pág. 68)
Reputação - Quem já não se sacrificou
alguma vez - pela própria reputação? (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e
do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 92, pág. 71)
?Costumes e moral - Ser moral,
morigerado, ético" significa prestar obediência a uma lei ou tradição há
muito estabelecida. Se alguém se sujeita a ela com dificuldade ou com prazer é
indiferente, bastando que o faça, "Bom" é chamado aquele que, após
longa hereditariedade e quase por natureza, pratica facilmente e de bom grado o
que é moral, conforme seja (por exemplo, exerce a vingança quando exercê-la faz
parte do bom costume, como entre os antigos gregos). Ele é denominado bom
porque é bom "para algo"; mas como, na mudança dos costumes, a
benevolência, a compaixão e similares sempre foram sentidos como "bons
para algo", como úteis, agora sobretudo o benevolente, o prestativo, é
chamado de "bom". Mau é ser "não moral" (imoral), praticar
o mau costume, ofender a tradição, seja ela racional ou estúpida; especialmente
prejudicar o próximo foi visto nas leis morais das diferentes épocas como
nocivo, de modo que hoje a palavra "mau" nos faz pensar sobretudo no
dano voluntário ao próximo. "Egoísta" e "altruísta" não é a
oposição fundamental que levou os homens à diferenciação entre moral e imoral,
bom e mau, mas sim estar ligado a uma tradição, uma lei, ou desligar-se dela.
Nisso não importa saber como surgiu a tradição, de todo modo ela o fez sem
consideração pelo bem e o mal, ou por algum imperativo categórico imanente, mas
antes de tudo a fim de conservar uma comunidade, um povo; cada hábito
supersticioso, surgido a partir de um acaso erroneamente interpretado,
determina uma tradição que é moral seguir; afastar-se dela é perigoso, ainda
mais nocivo para a comunidade que para o indivíduo (pois a divindade pune a
comunidade pelo sacrilégio e por toda violação de suas prerrogativas, e apenas
ao fazê-lo pune também o indivíduo). Ora, toda tradição se torna mais
respeitável à medida que fica mais distante a sua origem, quanto mais esquecida
for esta; o respeito que lhe é tributado aumenta a cada geração, a tradição se
torna enfim sagrada, despertando temor e veneração; assim, de todo modo a moral
da piedade é muito mais antiga do que a que exige ações altruístas. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 73, aforismo
96, ano 2001, São Paulo)
O prazer no costume - Um importante
gênero de prazer, e com isso importante fonte de moralidade, tem origem no
hábito. Fazemos o habitual mais facilmente, melhor, e por isso de mais bom
grado; sentimos prazer nisso, e sabemos por experiência que o habitual foi
comprovado, e portanto é útil; um costume com o qual podemos viver demonstrou
ser salutar, proveitoso, ao contrário de todas as novas tentativas não
comprovadas. O costume é, assim, a união do útil ao agradável, e além disso não
pede reflexão. Sempre que pode exercer coação, o homem a exerce para impor e
introduzir seus costumes, pois para ele são comprovada sabedoria de vida. Do
mesmo modo, uma comunidade de indivíduos força todos eles a adotar o mesmo
costume. Eis a conclusão errada: porque nos sentimos bem com um costume, ou ao
menos levamos nossa vida com ele, esse costume é necessário, pois vale como a
única possibilidade na qual nos sentimos bem; o bem estar da vida aprece vir
apenas dele. Essa concepção do habitual como condição da existência é aplicada
aos mínimos detalhes do costume: como a percepção da causalidade real é muito
escassa entre os povos e as culturas de nível pouco elevado, um medo
supersticioso cuida para que todos sigam o mesmo caminho; e até quando o
costume é difícil, duro, pesado, ele é conservado por sua utilidade
aparentemente superior. Não sabem que o mesmo grau de bem-estar pode existir
com outros costumes, e que mesmo graus superiores podem ser alcançados. Mas
certamente notam que todos os costumes, inclusive os mais duros, tornam-se mais
agradáveis e mais brandos com o tempo, e que também o mais severo modo de vida
pode ser tornar hábito e com isso um prazer. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 73-74, aforismo 97, ano 2001, São
Paulo)
Dois tipos de igualdade - A ânsia de
igualdade pode se expressar tanto pelo desejo de rebaixar os outros até seu
próprio nível (diminuindo, segregando, derrubando) como pelo desejo de subir
juntamente com os outros (reconhecendo, ajudando, alegrando-se com seu êxito)
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
198, aforismo 300, ano 2001, São Paulo)
A preferência por certas virtudes - Não
atribuímos valor especial à posse de uma determinada virtude, até que
percebemos a sua ausência total em nosso adversário. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 199, aforismo 302, ano
2001, São Paulo)
Respeitosamente - Não querer magoar, não
querer prejudicar ninguém pode ser sinal tanto de um caráter justo como de um
caráter medroso. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano",
Cia de Letras, p. 201, aforismo 314, ano 2001, São Paulo)
Criança - Maturidade do homem: significa
reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar. (Friedrich
Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo
94, pág. 71)
Mundo às avessas - Criticamos mais
duramente um pensamento quando ele oferece uma proposição que nos é
desagradável; no entanto, seria mais razoável fazê-lo quando sua proposição nos
é agradável. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de
Letras, p. 265, aforismo 484, ano 2001, São Paulo)
Amor ao próximo - Não o seu amor ao
próximo, mas a impotência do seu amor ao próximo é que impede os cristãos de
hoje de nos queimar. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal",
Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 104, pág.73)
Amor - Com freqüência a sensualidade
precipita o crescimento do amor, de modo que a raiz permanece fraca e é
facilmente arrancada. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal",
Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 120, pág. 75)
O laço da gratidão - Existem almas
servis, que levam a tal ponto o reconhecimento por benefícios, que estrangulam
a si mesmas com o laço da gratidão. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 277, aforismo 550, ano 2001, São
Paulo)
Confissão - Esquecemos nossa culpa
quando a confessamos a outro alguém, mas geralmente o outro não a esquece.
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
280, aforismo 568, ano 2001, São Paulo)
Monstruosidades - Quem combate
monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar
longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você. (Friedrich
Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo
146, pág. 79)
Atavismo - O que uma época percebe como
mau é geralmente uma ressonância anacrônica daquilo que um dia foi considerado
bom - o atavismo de um antigo ideal. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e
do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 149, pág. 79)
Sinais de saúde - O reparo, a
travessura, a sorridente suspeita, a zombaria são sinais de saúde: todo
absoluto pertence à patologia. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do
Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 154, pág. 80)
Loucura - A loucura é algo raro em
indivíduos - mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma. (Friedrich
Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo
156, pág. 80)
Falar de si - Falar muito de si pode ser
um meio de se ocultar. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal",
Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 169, pág. 82)
Elogio - No elogio há mais indiscrição
que na censura. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das
Letras, ano 2001, Aforismo 170, pág. 82)
Desejo - Por fim amamos o próprio
desejo, e não o desejado. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do
Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 175, pág. 83)
Amor e reverência - O amor deseja, o
medo evita. Por causa disso não podemos ser amados e reverenciados pela mesma
pessoa, não no mesmo período de tempo, pelo menos. Pois quem reverencia
reconhece o poder, isto é, o teme: seu estado é de medo-respeito. Mas o amor
não reconhece nenhum poder, nada que separe, distinga, sobreponha ou submeta.
E, como ele não reverencia, pessoas ávidas de reverência resistem aberta ou
secretamente a serem amadas. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado
humano", Cia de Letras, p. 289, aforismo 603, ano 2001, São Paulo)
Bondade - Há uma exuberância da bondade
que pode parecer maldade. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do
Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 184, pág. 84)
Estar à altura de algo - "Isso não
me agrada" - Por quê? - "Não estou à altura disso." - Algum
homem já respondeu assim? (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do
Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 185, pág. 84)
Mau humor com os outros e com o mundo -
Quando, como é tão freqüente, desafogamos nosso mau humor nos outros, e na
realidade o sentimos em relação a nós mesmos, o que no fundo procuramos é
anuviar e enganar o nosso julgamento: queremos motivar esse mau humor a
posterior, mediante os erros, as deficiências dos outros, e assim não ter olhos
para nós mesmos. - Os homens religiosamente severos, juízes implacáveis consigo
mesmos, foram também os que mais denegriram a humanidade: nunca houve um santo
que reservasse para si os pecados e para os outros as virtudes; e tampouco
alguém que, conforme o preceito do Buda, ocultasse às pessoas o que tem de bom
e lhes deixasse ver apenas o que tem de mau. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 290, aforismo 607, ano 2001, São
Paulo)
A melancolia de tudo terminado -
Péssimo! Sempre a velha história! Ao terminar a construção da casa, notamos que
sem nos dar conta aprendemos, ao construí-la, algo que simplesmente tínhamos de
saber, antes de começar a construir. O eterno aborrecido "Tarde
demais!" - a melancolia de tudo terminado!... '
Confusão entre causa e efeito -
Inconscientemente buscamos os princípios e as teorias adequados ao nosso
temperamento, de modo que afinal aparece que esses princípios e teorias criaram
o nosso caráter, deram-lhe firmeza e segurança: quando aconteceu justamente o
contrário. O nosso pensamento e julgamento, assim parece, é transformado
posteriormente em causa de nosso ser: mas na realidade é nosso ser a causa de
pensarmos e julgarmos desse ou daquele modo. - E o que nos induz a essa comédia
quase inconsciente? A indolência e a comodidade, e também o desejo vaidoso de ser
considerado inteiramente consistente, uniforme no ser e no pensar: pois isso
conquista respeito, empresta confiança e poder. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 291, aforismo 608, ano 2001, São
Paulo)
Perigo para o homem nobre - ... Quem tem
os desejos de uma alma elevada e exclusiva e raramente encontra sua mesa posta,
seu alimento pronto, estará sempre em grande perigo; mas esse perigo é hoje
extraordinário. Lançado numa época ruidosa e plebéia, com a qual não quer
partilhar o mesmo prato, ele pode facilmente perecer de fome e sede ou, caso
finalmente "se sirva" - de súbita náusea. - Todos nós, é provável, já
nos sentamos junto a mesas a que não pertencíamos; e precisamente os mais
espirituais entre nós, os mais difíceis de serem alimentados, conhecem aquela
perigosa dispepsia, que vem de uma súbita percepção e desilusão da comida e dos
vizinhos de mesa - a náusea da sobre-mesa. (Friedrich Nietzsche, "Além do
Bem e do Mal", Cia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo César
de Souza, ano 2001, Aforismo 282, pág. 190)
Elogio - Supondo que se deseje
absolutamente elogiar, constitui um sutil e também nobre autodomínio elogiar
somente quando não se está de acordo: - de outro modo se estaria elogiando a si
mesmo, o que vai de encontro ao bom gosto - sem duvida, um autodomínio que traz
boa instigação e ocasião para ser continuamente mal entendido. É preciso, para
se dar a esse verdadeiro luxo de gosto e moralidade, não viver enter
grosseirões do espírito, mas entre homens nos quais os mal-entendidos e
equívocos divertem por sua sutileza - ou então se terá de pagar caro! -
"Ele me elogia: portanto me dá razão" - essa dedução perfeitamente
asinina nos estraga boa parte da vida, a nós, eremitas, porque atrai os asnos à
nossa vizinhança e amizade. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do
Mal", Cia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza,
ano 2001, Aforismo 283, pág. 191)
Filosofia - Toda filosofia é uma
filosofia-de-fachada - eis um juízo-de-eremita: "Existe algo de arbitrário
no fato de ele se deter aqui, de olhar para trás e em volta, de não cavar mais
fundo aqui e pôr de lado a pá - há também algo de suspeito nisso". Toda
filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um palavra também
esconderijo, toda uma máscara. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do
Mal", Cia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza,
ano 2001, Aforismo 289, pág. 193)
Amor - ... O amor é o estado em que os
homens vêem as coisas como elas não são. A força da ilusão está no amor em toda
sua potência, assim como a força de adoçar, de transfigurar.... (Friedrich
Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição
Integral,1992, pág. 44)
Cristo (1) - ... (Cristo) não tinha mais
necessidade de fórmulas, de ritos para comunicar-se com Deus, nem mesmo da
prece. Acabou com toda doutrina judaica de penitência e reconciliação, sabe que
somente com a prática da vida o homem se sente "divino",
"abençoado", "evangélico", em qualquer momento um
"filho de Deus." "Penitência', "oração" e
"absolvição" não são o caminho para Deus: somente a prática
evangélica conduz a Deus, ela é propriamente "Deus"! O que foi
destronado do Evangelho foi o judaísmo dos conceitos de "pecado",
"absolvição dos pecados", "fé", "redenção dos
pecados", toda doutrina da igreja judaica foi negada na "boa
nova". (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo",
Edição Integral,1992, pág. 56)
Reino de Deus - ... O "reino de
Deus" não é o que se espera; não existe nem ontem nem depois do amanhã,
não virá em "mil anos", é uma experiência do coração; está em toda
parte, em parte alguma... (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição
do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 57)
Vida - Quando não se coloca o peso da
vida na própria vida, mas sim no "além", no nada, então retira-se da
vida toda sua importância. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói
toda razão, todo instinto natural. Tudo que é benéfico, vital, promissor nos
instintos, suscita cada vez maior desconfiança. Viver assim, de modo a esvaziar
o sentido do viver, isso tornou-se atualmente o "sentido" da vida...
(Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo",
Edição Integral,1992, pág. 65)
Fé (1)- ... a fé não move montanhas (na
verdade coloca montanhas onde não há nenhuma) ... (Friedrich Nietzsche, "O
Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 75)
Fé (2) - ... Fé significa
não-querer-saber o que é verdadeiro. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo -
Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 77)
Cristianismo - O cristianismo tem
necessidade de doença, da mesma forma mais ou menos como os gregos tinham
necessidade de excesso de saúde; criar doentes é a meta obscura de todo sistema
de procedimentos de cura da Igreja. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo -
Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 75)
Mártires - ... as mortes dos mártires,
diga-se da passagem, foram uma grande infelicidade histórica: elas
fascinavam.... Os mártires prejudicaram a verdade... Até hoje basta uma certa
crueza na perseguição de uma seita insignificante para que esta conquiste um
nome respeitável. Como? O valor de uma coisa por acaso muda só porque alguém
desiste da vida.... Exatamente isso foi a maior idiotice histórica de todos os
perseguidores, ter dado à questão dos oponentes uma aparência de honra, tê-la
presenteado com a fascinação do martírio... A mulher continua ajoelhada ante um
equívoco, porque disseram-lhe que por sua causa alguém morreu na cruz. É pois a
cruz um argumento? ... Escreveram letras sangrentas no caminho que percorreram
e sua loucura ensinava que a verdade se prova com sangue. Mas o sangue é a pior
testemunha da verdade; o sangue envenena transformando o ensinamento puro em
loucura e ódio dos corações. E quando alguém atravessa o inferno em nome da
doutrina, o que isso prova? É mais verdadeiro quando a própria doutrina nasce
da queimadura. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do
Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 79)
O homem de fé - O homem de fé, o crente
de qualquer espécie é obrigatoriamente um homem dependente, um desses que não
pode colocar sua própria meta ou colocar metas para si mesmo. O crente não se
pertence, só sabe ser um meio, tem de ser consumido, precisa de alguém que o
consuma. Seu instinto fornece a honra mais alta à moral de auto-esvaziamento:
tudo persuade para isso, sua inteligência, sua experiência, sua vaidade. Toda
forma de crença é em si mesma uma expressão de auto-esvaziamento, e
auto-afastamento. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do
Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 80)
Homens atrasados e homens antecipadores
- O caráter desagradável, que é pleno de desconfiança, que recebe com inveja
todos os êxitos de competidores e vizinhos, que é violento e raivoso com
opiniões divergentes, mostra que pertence a um estágio anterior da cultura, que
é então um resíduo: pois o seu modo de lidar com as pessoas era certo e
apropriado para as condições de uma época em que vigorava o "direito dos
punhos"; ele é um homem atrasado. Um outro caráter, que prontamente
partilha da alegria alheia, que conquista amizades em toda parte, que tem
afeição pelo que cresce e vem a ser, que tem prazer com as honras e sucessos de
outros e não reivindica o privilégio de sozinho conhecer a verdade, mas é pleno
de uma modesta desconfiança - este um homem antecipador, que se move rumo a uma
superior cultura humana. O caráter desagradável procede de um tempo em que os
toscos fundamentos das relações humanas estavam por ser construídos; o outro
vive nos andares superiores destas relações, o mais afastado possível do animal
selvagem que encerrado nos porões, sob os fundamentos da cultura, uiva e
esbraveja. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de
Letras, p. 293-294, aforismo 614, ano 2001, São Paulo)
Alienado do presente - Há grandes
vantagens em alguma vez alienar-se muito de seu tempo e ser como que arrastado
de suas margens, de volta para o oceano das antigas concepções do mundo.
Olhando para a costa a partir de lá, abarcamos pela primeira vez sua
configuração total, e ao nos reaproximarmos dela teremos a vantagem de, no seu
conjunto, entendê-la melhor do que aqueles que nunca a deixaram. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 294,
aforismo 616, ano 2001, São Paulo)
Viver - Que significa viver? - Viver - é
continuamente afastar de si algo que quer morrer; viver - é ser cruel e
implacável com tudo o que em nós, e não apenas em nós , se torna fraco e velho.
(Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência", Cia das Letras, ano 2001,
Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Aforismo 26, pág. 77)
Ser profundo e parecer profundo - Quem
sabe que é profundo, busca a clareza; quem deseja parecer profundo para a
multidão, procura ser obscuro. Pois a multidão toma por profundo aquilo cujo
fundo não vê: ela é medrosa, hesita em entrar na água. (Friedrich Nietzsche,
"A gaia Ciência", Cia das Letras, ano 2001, Tradução, notas e
posfácio de Paulo César de Souza, Aforismo 173, pág. 166)
Pobre - Hoje ele é pobre; mas não porque
lhe tiraram tudo, e sim porque jogou tudo fora - que lhe importa isso? Ele está
habituado a encontrar. - Pobres são aqueles que não entendem a pobreza
voluntária dele. (Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência", Cia das
Letras, ano 2001, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Aforismo
185, pág. 169)
Contra os que elogiam - A: "Somos
elogiados apenas por nossos iguais!". B: "Sim! E quem o elogia lhe
diz: você é meu igual!" (Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência",
Cia das Letras, ano 2001, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza,
Aforismo 190, pág. 170)
Ter espírito filosófico - Habitualmente
nos empenhamos em alcançar, ante todas as situações e acontecimentos da vida,
uma atitude mental, uma maneira de ver as coisas - sobretudo a isto se chama
ter espírito filosófico. Para enriquecer o conhecimento, no entanto, pode ser
de mais valor não se uniformizar desse modo, mas escutar a voz suave das
diferentes situações da vida; elas trazem consigo suas próprias maneiras de
ver. Assim participamos atentamente da vida e da natureza de muitos, não
tratando a nós mesmos como um indivíduo fixo, constante, único. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 295,
aforismo 618, ano 2001, São Paulo)
Sacrifício - Havendo a escolha, deve-se
preferir um grande sacrifício a um pequeno: pois compensamos o grande
sacrifício com a auto-admiração, o que não é possível no caso do pequeno.
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
295, aforismo 620, ano 2001, São Paulo)
Convicção - Convicção é a crença de
estar, em algum ponto do conhecimento, de posse da verdade absoluta. Esta
crença pressupõe, então, que existam verdades absolutas; e, igualmente, que
tenham sido achados os métodos perfeitos para alcançá-las; por fim, que todo
aquele que tem convicções se utilize desses métodos perfeitos. Todas as três
asserções demonstram de imediato que o homem das convicções não é o do
pensamento científico; ele se encontra na idade da inocência teórica e é uma
criança, por mais adulto que seja em outros aspectos. Milênios inteiros, no
entanto, viveram com essas pressuposições pueris, e delas brotaram as mais
poderosas fontes de energia da humanidade. Os homens inumeráveis que se
sacrificaram por suas convicções acreditavam fazê-lo pela verdade absoluta.
Nisso estavam todos errados: provavelmente nenhum homem se sacrificou jamais
pela verdade; ao menos a expressão dogmática de sua crença terá sido não
científica ou semicientífica. Mas realmente queriam ter razão, porque achavam
que deviam ter razão. Permitir que lhes fosse arrancada a sua crença talvez
significasse pôr em dúvida a sua própria beatitude eterna. Num assunto de tal
extrema importância, a "vontade" era perceptivelmente a instigadora
do intelecto. A pressuposição de todo crente de qualquer tendência era não poder
ser refutado; se os contra-argumentos se mostrassem muito fortes, sempre lhe
restava ainda a possibilidade de difamar a razão e até mesmo levantar o credo
quia absurdum est [creio porque é absurdo] como bandeira do extremado
fanatismo. Não foi o conflito de opiniões que tornou a história tão violenta,
mas o conflito da fé nas opiniões, ou seja, das convicções. Se todos aqueles
que tiveram em conta a sua convicção, que lhe fizeram sacrifícios de toda não
pouparam honra, corpo e vida para servi-la, tivessem dedicado apenas metade de
sua energia a investigar com que direito se apegavam a esta ou àquela
convicção, por que caminho tinham a ela chegado: como se mostraria pacífica a
história da humanidade! Quanto mais conhecimento não haveria! Todas as cruéis
cenas, na perseguição aos hereges de toda espécie, nos teriam sido poupadas por
duas razões: primeiro, porque os inquisidores teriam inquirido antes de tudo
dentro de si mesmos superando a pretensão de defender a verdade absoluta;
porque os próprios hereges não teriam demonstrado maior interesse por teses tão
mal fundamentadas como as dos sectários e "ortodoxos" religiosos,
após tê-las examinado. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano",
Cia de Letras, p. 301, aforismo 630, ano 2001, São Paulo)
Convicções - Quem não passou por
diversas convicções, mas ficou preso à fé em cuja rede se emaranhou primeiro, é
em todas as circunstâncias, justamente por causa dessa imutabilidade, um representante
de culturas atrasadas; em conformidade com esta ausência de educação (que
sempre pressupõe educabilidade), ele é duro, irrazoável, incorrigível, sem
brandura, um eterno desconfiado, um inescrupuloso, que emprega todos os meios
para impor sua opinião, por ser incapaz de compreender que têm de existir
outras opiniões; assim considerado, ele é talvez uma fonte de força, e em
culturas que se tornaram demasiado livres e frouxas é até mesmo salutar, mas
apenas porque incita fortemente à oposição; pois a delicada estrutura da nova
cultura que é obrigada a lutar contra ele se tornará forte ela mesma.
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
302, aforismo 632, ano 2001, São Paulo)
Convicções - Ainda somos, no essencial,
os mesmos homens da época da Reforma: como poderia ser diferente? Mas o fato de
já não no permitirmos certos meios de contribuir para a vitória de nossa
opiniões nos diferencia daquele tempo, e prova que pertencemos a uma cultura
superior. Quem ainda hoje combate e derruba opiniões com suspeitas, com acessos
de raiva, como se fazia durante a Reforma, revela claramente que teria queimado
o seus rivais, se tivesse vivido em outros tempos, e que teria recorrido a
todos os meios da Inquisição, se tivesse vivido como adversário da Reforma.
Essa Inquisição era razoável na época pois não significava outra coisa senão o
estado de sítio que teve de ser proclamado em todo o domínio da Igreja, que,
como todo estado de sítio, autorizava os meios mais extremos, com base no
pressuposto (que já não partilhamos com aqueles homens) de que a Igreja tinha a
verdade, e de que era preciso conservá-la para a salvação da humanidade, a todo
custo e com todo sacrifício. Hoje em dia, porém, já não admitimos tão
facilmente que alguém possua a verdade: os rigorosos métodos de investigação
propagaram desconfiança e cautela bastantes, de modo que todo aquele que
defende opiniões com palavras e atos violentos é visto como um inimigo de nossa
presente cultura ou, no mínimo, como um atrasado. Realmente: o pathos de
possuir a verdade vale hoje bem pouco em relação àquele outro, mais suave e
nada altissonante, da busca da verdade, que nunca se cansa de reaprender e
reexaminar. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de
Letras, p. 303, Aforismo 633, ano 2001, São Paulo)
Tempos felizes - Uma época feliz é
completamente impossível, porque as pessoas querem desejá-la, mas não tê-la, e
todo indivíduo, em seus dias felizes, chega quase a implorar por inquietude e
miséria. O destino dos homens se acha disposto para momentos felizes - cada
vida humana tem deles -, mas não para tempos felizes. No entanto, estes
perduram na fantasia humana como "o que está além dos montes", como
uma herança dos antepassados; pois a noção de uma era feliz talvez provenha, desde
tempos imemoriais, daquele estado em que o homem, após violentos esforços na
caça e na guerra, entrega-se ao repouso, distende os membros e ouve o rumor das
asas do sono. Há uma conclusão errada em imaginar, conforme aquele antigo
hábito, que após períodos inteiros de carência e fadiga se pode partilhar
também aquele estado de felicidade, com intensidade e duração correspondentes.
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
251, Aforismo 471, ano 2001, São Paulo)
Nietzsche, Estado e Política
O socialismo em vista de seus meios - O
socialismo é o visionário irmão mais novo do quase extinto despotismo, do qual
quer ser herdeiro; seus esforços, portanto, são reacionários no sentido mais
profundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como até hoje somente
o despotismo teve, e até mesmo supera o que houve no passado, por aspirar ao
aniquilamento formal do indivíduo: o qual ele vê como um luxo injustificado da
natureza, que deve aprimorar e transformar num pertinente órgão da comunidade.
Devido à afinidade, o socialismo sempre aparece na vizinhança de toda excessiva
manifestação de poder, como o velho, típico socialista Platão na corte do
tirano da Sicília; ele deseja (e em algumas circunstâncias promove) o cesáreo
Estado despótico neste século, porque, como disse, gostaria de vir a ser seu
herdeiro. Mas mesmo essa herança não bastaria para os seus objetivos, ele
precisa da mais servil submissão de todos os cidadãos ao Estado absoluto, como
nunca houve igual; e, já não podendo contar nem mesmo com a antiga piedade
religiosa ante o Estado, tendo, queira ou não, que trabalhar incessantemente
para a eliminação deste - pois trabalha para a eliminação de todos os Estados
existentes -, não pode ter esperança de existir a não ser por curtos períodos,
aqui e ali, mediante o terrorismo extremo. Por isso ele se prepara secretamente
para governos de terror, e empurra a palavra "justiça" como um prego
na cabeça das massas semicultas, para despojá-las totalmente de sua compreensão
(depois que esta já sofreu muito com a semi-educação) e criar nelas uma boa
consciência para o jogo perverso que deverão jogar. - O socialismo pode servir
para ensinar, de modo brutal e enérgico, o perigo que há em todo acumulo de
poder estatal, e assim instilar desconfiança do próprio Estado. Quando sua voz
áspera se junta ao grito de guerra que diz o máximo de Estado possível, este
soa, inicialmente, mais ruidoso do que nunca: mas logo também se ouve, com
força tanto maior, o grito contrário que diz: O mínimo de Estado possível. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 255-256,
Aforismo 473, ano 2001, São Paulo)
O homem europeu e a destruição das
nações (elogio aos judeus) - O comércio e a indústria, a circulação de livros e
cartas, a posse comum de toda a cultura superior, a rápida mudança de lar e de
região, a atual vida nômade dos que não possuem terra - essas circunstâncias
trazem necessariamente um enfraquecimento e por fim uma destruição das nações,
ao menos das européias: de modo que a partir delas, em conseqüência de
contínuos cruzamentos, deve surgir uma raça mista, a do homem europeu. Hoje em
dia o isolamento das nações trabalha contra esse objetivo, de modo consciente
ou inconsciente, através da geração de hostilidades nacionais, mas a mistura
avança lentamente, apesar dessas momentâneas correntes contrárias: esse
nacionalismo artificial é, aliás, tão perigoso como era o catolicismo
artificial, pois é na essência um estado de emergência e de sítio que alguns
poucos impõem a muitos, e que requer astúcia, mentira e força para manter-se
respeitável. Não é o interesse de muitos (dos povos), como se diz, mas
sobretudo o interesse de algumas dinastias reinantes, e depois de determinadas
classes do comércio e da sociedade, o que impele a esse nacionalismo; uma vez
que se tenha reconhecido isto, não é preciso ter medo de proclamar-se um bom
europeu e trabalhar ativamente pela fusão das nações: no que os alemães, graças
à sua antiga e comprovada qualidade de intérpretes e mediadores dos povos,
serão capazes de colaborar. - Diga-se de passagem que o problema dos judeus
existe apenas no interior dos Estados nacionais, na medida em que neles a sua
energia e superior inteligência, o seu capital de espírito e de vontade,
acumulado de geração em geração em prolongada escola de sofrimento, devem
preponderar numa escala que desperta inveja e ódio, de modo que em quase todas
as nações de hoje - e tanto mais quanto mais nacionalista é a pose que adotam -
aumenta a grosseria literária de conduzir os judeus ao matadouro, como bodes
expiatórios de todos os males públicos e particulares. Quando a questão não for
mais conservar as nações, mas criar uma raça européia mista que seja a mais
vigorosa possível, o judeu será um ingrediente tão útil e desejável quanto
qualquer outro vestígio nacional. Características desagradáveis, e mesmo
perigosas, toda nação, todo indivíduo tem: é cruel exigir que o judeu constitua
exceção. Nele essas características podem até ser particularmente perigosas e
assustadoras; e talvez o jovem especulador da Bolsa judeu seja a invenção mais
repugnante da espécie humana. Apesar disso gostaria de saber o quanto, num
balanço geral, devemos relevar num povo que, não sem a culpa de todos nós, teve
a mais sofrida história entre todos os povos, e ao qual devemos o mais nobre
dos homens (Cristo), o mais puro dos sábios (Spinoza), o mais poderoso dos
livros e a lei moral mais eficaz do mundo. E além disso: nos tempos mais
sombrios da Idade Média, quando as nuvens asiáticas pesavam sobre a Europa, foram
os livres pensadores, eruditos e médicos judeus que, nas mais duras condições
pessoais, mantiveram firme a bandeira das Luzes e da independência intelectual,
defendendo a Europa contra a Ásia; tampouco se deve menos aos seus esforços o
fato de finalmente vir a triunfar uma explicação do mundo mais natural, mais
conforme à razão e certamente não mítica, e de o anel da cultura que hoje nos
liga às luzes da Antigüidade greco-romana não ter se rompido. Se o cristianismo
tudo fez para orientalizar o Ocidente, o judaísmo contribuiu de modo essencial
para ocidentalizá-lo de novo: o que, num determinado sentido, significa fazer
da missão e da história da Europa uma continuação da grega. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 257-258,
Aforismo 475, ano 2001, São Paulo)
Propriedade e Justiça - Quando os
socialistas demonstram que a divisão da propriedade, na humanidade de hoje, é
conseqüência de inúmeras injustiças e violências, e in summa rejeitam a
obrigação para com algo de fundamento tão injusto, eles vêem apenas um aspecto
da questão. O passado inteiro da cultura antiga foi construído sobre a
violência, a escravidão, o embuste, o erro; mas nós, herdeiros de todas essas
situações, e mesmo concreções de todo esse passado, não podemos abolir a nós
mesmos, nem nos é permitido querer extrair algum pedaço dele. A disposição
injusta se acha também na alma dos que não possuem, eles não são melhores do
que os possuidores e não têm prerrogativa moral, pois em algum momentos seus
antepassados foram possuidores. O que é necessário não são novas distribuições
pela força, mas graduais transformações do pensamento; em cada indivíduo a
justiça deve se tornar maior e o instinto de violência mais fraco. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 244,
Aforismo 452, ano 2001, São Paulo)
Os perigosos entre os subversivos -
Podemos dividir os que pretendem uma subversão da sociedade entre aqueles que
desejam alcançar algo para si e aqueles que o desejam para seus filhos e netos.
Esses últimos são os mais perigosos; porque têm a fé e a boa consciência do
desinteresse. Os demais podem ser contentados com um osso: a sociedade
dominante é rica e inteligente o bastante para isso. O perigo começa quando os
objetivos se tornam impessoais; os revolucionários movidos por interesse
impessoal podem considerar todos os defensores da ordem vigente como
pessoalmente interessados, sentindo-se então superiores a eles. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 245,
Aforismo 454, ano 2001, São Paulo)
Uma ilusão na doutrina da subversão - Há
visionários políticos e sociais que com eloquência e fogosidade pedem a
subversão de toda ordem, na crença de que logo em seguida o mais altivo templo
da bela humanidade se erguerá por si só. Nestes sonhos perigosos ainda ecoa a
superstição de Rousseau, que acredita numa miraculosa, primordial, mas,
digamos, soterrada bondade da natureza humana, e que culpa por esse
soterramento as instituições da cultura, na forma de sociedade, Estado,
educação. Infelizmente aprendemos, com a história, que toda subversão desse
tipo traz a ressurreição das mais selvagens energias, dos terrores e excessos
das mais remotas épocas, há muito tempo sepultados: e que, portanto, uma subversão
pode ser fonte de energia numa humanidade cansada, mas nunca é organizadora,
arquiteta, artista, aperfeiçoadora da natureza humana. - Não foi a natureza
moderada de Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar e modificar, mas sim
as apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau que despertaram o espírito
otimista da Revolução, contra o qual eu grito: "Ecrasez l'infâme [Esmaguem
o infame]!. Graças a ele o espírito do Iluminismo e da progressiva evolução foi
por muito tempo afugentado: vejamos - cada qual dentro de si - se é possível
chamá-lo de volta! (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano",
Cia de Letras, p. 249, Aforismo 463, ano 2001, São Paulo)
Comedimento - A completa firmeza de
pensamento e investigação, ou seja, a liberdade de espírito, quando se tornou
qualidade do caráter, traz comedimento na ação: pois enfraquece a avidez, atrai
muito da energia existente, para promover objetivos espirituais, e mostra a
utilidade parcial ou a inutilidade e o perigo de todas as mudanças repentinas. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 249,
Aforismo 464, ano 2001, São Paulo)
Ressurreição do espírito - No leito de
enfermo da política, geralmente um povo rejuvenesce e redescobre seu espírito,
que ele havia gradualmente perdido ao buscar e assegurar o poder. A cultura
deve suas mais altas conquistas aos tempos politicamente debilitados.
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
250, Aforismo 465, ano 2001, São Paulo)
Instrução pública - Nos grandes Estados
a instrução pública será sempre, no melhor dos casos, medíocre, pelo mesmo
motivo por que nas grandes cozinhas cozinha-se mediocremente. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 250,
Aforismo 467, ano 2001, São Paulo)
Contra o feminismo - Em nenhuma época o
sexo fraco foi tratado com tanto reaspeito pelos homens como na nossa - o que é
parte da tendência democrática e seu gosto básico, do mesmo modo que
Contra o feminismo - Em nenhuma época o
sexo fraco foi tratado com tanto respeito pelos homens como na nossa - o que é
parte da tendência democrática e seu gosto básico, do mesmo modo que a falta de
reverência pela velhice -: como admirar que logo se abuse desse respeito?
Querem mais, aprendem a exigir, por fim acham quase ofensivo esse tributo de
respeito, preferiam a competição por direitos, até mesmo a luta: em suma, a
mulher perde o pudor. Acrescentemos logo que também perde o gosto. Desaprende a
temer o homem: mas a mulher que "desaprende o temor" abandona seus
instintos mais femininos. Que a mulher ouse avançar quando já não se quer nem
se cultiva o que há de amedrontador no homem, mais precisamente o homem no
homem, é algo de se esperar e também de compreender; o que dificilmente se
compreende é que por isso mesmo a mulher - degenera. Isso acontece hoje: não
nos enganemos! Em toda parte onde o espírito industrial venceu o espírito
militar e aristocrático, a mulher aspira à independência econômica e legal de
um caixeiro: "a mulher como caixeira" - está escrito no portal da
sociedade moderna que se forma. Apoderando-se de tal maneira de novos direitos,
buscando tornar-se "senhor" e inscrevendo o "progresso- feminino
em suas bandeiras e bandeirolas, ela vê realizar-se o contrário, com terrível
nitidez: a mulher está em regressão. Desde a Revolução Francesa a influência da
mulher na Europa diminuiu, na proporção em que aumentaram seus direitos e
exigências; e a "emancipação da mulher", na medida em que é
reivindicada e promovida pelas próprias mulheres (e não só por homens de cabeça
oca) resulta num sintoma curioso de progressivo enfraquecimento e embotamento
dos instintos mais femininos. Há estupidez nesse movimento, uma quase masculina
estupidez, da qual uma mulher bem lograda - que é sempre uma mulher sagaz - se
envergonharia gravemente. Perder a intuição do terreno onde a vitória é mais
segura; descuidar o exercício de sua verdadeira arma; pôr-se a anteceder o
homem, chegando talvez "até o livro", quando antes praticava a
reserva e uma sutil, astuta submissão; combater, com virtuosa audácia, a crença
do homem num ideal radicalmente outro escondido na mulher, num eterno - e
necessário - feminino; tentar dissuadir o homem, com insistência e parolice, de
que a mulher deve ser cuidada, mantida, protegida, poupada como um animal doméstico
bem delicado, curiosamente selvagem e freqüentemente agradável; a procura
canhestra e indignada de tudo o que há de escravo e servil na posição da mulher
na presente ordem social (como se a escravidão fosse um contra-argumento, e não
uma condição de toda cultura elevada, de toda elevação da cultura) - que
significa tudo isso, senão uma desagregação dos instintos femininos, uma
desfeminização? Certamente não faltam idiotas amigos das senhoras e corruptores
da mulher entre os doutos jumentos masculinos, que aconselham a mulher a se
desfeminizar dessa maneira e imitar as estupidezes de que sofre o
"homem" da Europa, a "masculinidade" européia - que
gostariam de rebaixar a mulher á "educação geral" e mesmo à leitura
de jornais e à política. Pensa-se inclusive, aqui e ali, em fazer das mulheres
livres-pensadores e literatos: como se uma mulher sem religião não fosse, para
um homem profundo e ateu, algo totalmente repugnante ou ridículo -: em quase
toda parte arruinam os nervos delas com a mais doentia e perigosa espécie de
música (nossa mais recente música alemã) e as tornam a cada dia mais histéricas
e mais incapacitadas para sua primeira e última ocupação, que é gerar filhos
robustos. Querem "cultivá-las" ainda mais e, como dizem, através da
cultura tornar forte o "sexo fraco": como se a história não
ensinasse, do modo mais premente, que o "cultivo" do ser humano e o
enfraquecimento - isto é, enfraquecimento, fragmentação adoecimento da força de
vontade - sempre andam juntos, e que as mais poderosas e influentes mulheres do
mundo (por último a mãe de Napoleão) deveram seu poder e autoridade junto aos
homens à sua força de vontade - e não aos professores! O que na mulher inspira
respeito e com freqüência temor é sua natureza, que é "mais natural"
que a do homem, sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre
por baixo da luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria
interior, o caráter inapreensível, vasto, errante de seus desejos e virtudes...
O que, com todo o temor, desperta compaixão por esse belo e perigoso felino
"mulher", é o fato de ela parecer mais sofredora, mais frágil, mais
necessitada de amor e condenada à desilusão que qualquer outro animal. Temor e
compaixão: Com estes sentimentos o homem colocou-se até agora diante da mulher,
sempre com um pé na tragédia, que dilacera ao encantar. - Como? E isso estaria
acabando? O desencantamento da mulher está em marcha? Estará surgindo o
entediamento da mulher? .... (Para além do Bem e do Mal, Cia das Letras, 2001,
nº 239, pág. 145)
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